O EFEITO BORBOLETA NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS E O PAPEL DO DIREITO NO CENÁRIO GLOBAL
Certa vez vi um daqueles vídeos em que estrangeiros são desafiados a provarem comidas típicas do Brasil. No episódio em questão, o “menu” era o café da manhã tradicional de todo brasileiro: pão francês na chapa com manteiga e café com leite. Uma delícia, não é?
Tenho certeza que, assim como eu, você se identificou com essa tradição bastante característica; afinal, um bom brasileiro jamais dispensaria um pãozinho quente na chapa. O problema que temos visto, contudo, é o aumento no preço desse item precioso. Uma ida ao mercado ou à padaria já é suficiente para nos deixar à beira de uma indigestão. O que muita gente não se atenta, porém, é que a alta no preço do pão (e de diversos outros itens) tem uma origem internacional.
Desde o mês de fevereiro temos acompanhado a invasão da Ucrânia pela Rússia. Nesse sentido, vale ressaltar que ambos os países estão no topo da cadeia do trigo, sendo a Rússia o maior exportador global da commodity, enquanto a Ucrânia está na quarta posição. Juntos, os dois países exportam cerca de 210 milhões de toneladas do grão, 30% do comércio mundial. Assim, temos certo grau de certeza ao afirmar que a continuidade no conflito não dificultará apenas a exportação dos estoques disponíveis, mas também afetará o plantio e a colheita dos grãos na medida usual. Isso, por sua vez, impulsionará ainda mais alto os preços do trigo.
O exemplo que abordei acima se multiplica em diversos outros níveis: por onde quer que andemos ou por onde for que nossos olhos passem, é perceptível o rastro deixado pelos acontecimentos da arena internacional. A dinâmica do mundo moderno se mostra semelhante ao chamado “efeito borboleta”, onde uma alteração mínima em determinadas condições pode ocasionar grandes impactos em determinado sistema. Sendo assim, fica o questionamento: qual o papel do direito em um ambiente tão volátil? Seria possível estabelecer normas perenes e, sobretudo, vinculantes em um cenário que efervesce a cada mínimo movimento?
Tradicionalmente, dentro da ordem jurídica de determinado Estado, o direito é o elemento que garante coesão, ordem e dinamismo à relação entre sociedade civil e poder público. É o direito quem dita as regras de conduta e limita o poder do Estado, garantindo aos cidadãos direitos e garantias fundamentais. Assim, partindo dessa premissa, a resposta aos nossos questionamentos seria simples e direta: sim, o direito teria o condão de estabelecer normas válidas e cogentes no âmbito global. A resposta, porém, não é tão simples assim.
Tomando como base o contratualismo de Thomas Hobbes, Hans Morgenthau desenvolve a teoria realista das relações internacionais. Em suma, entende-se que a ordem internacional é anárquica e seus atores - os Estados - são egoístas por natureza. O objetivo de cada país seria, portanto, garantir a sua própria existência, não havendo nenhum ente supranacional capaz de submeter integralmente a vontade dos Estados.
Ao longo do tempo, outras teorias (isto é, lentes pelas quais se interpreta as relações internacionais) foram surgindo, mas o realismo tem provado o seu ponto diversas vezes: ganha o mais forte em detrimento do mais fraco. Como diria Lord Voldemort, no livro “Harry Potter e a Pedra Filosofal”, “não existe bem nem mal, só existe o poder, e aqueles que são demasiado fracos para o desejarem”. É o poder, e não o direito, o elemento que organiza, de certo modo, o sistema internacional. Se não fosse assim, a Rússia não se atreveria a invadir um país e as organizações internacionais já teriam colocado um basta em toda a situação. O fato de que o conflito continua vivo e em plena ascendência somente comprova o ponto levantado por Morgenthau anos atrás.
Assim sendo, retornamos ao nosso questionamento prévio: seria o direito a chave para a organização do sistema internacional?
Não sou cética ao ponto de anular completamente o papel do direito na ordem global. Desde 1945, com o surgimento da Organização das Nações Unidas, tem se buscado uma maior regulamentação das ações estatais, bem como a “limitação” da soberania nacional em detrimento de uma comunidade de nações coesa e interdependente. Talvez o maior dos exemplos dessa alteração sistêmica se encontre no campo comercial, mais especificamente no âmbito da Organização Mundial do Comércio, que adota um mecanismo de solução de controvérsias pautado em três pilares: abrangência, automaticidade e exequibilidade.
Entretanto, basta um simples olhar estrutural para identificar os percalços encontrados pelo direito no caminho de sua implementação global: enquanto o papel desempenhado por ele na ordem interna se classifica como sendo essencial, isto é, enquanto o direito é a base de toda a organização interna de determinado Estado (sujeitando aos seus preceitos, inclusive, as relações de poder), tal lógica é invertida no campo externo. O direito não é o elemento primário organizador da ordem internacional, mas sim o poder (seja o chamado hard power ou o dito soft power).
Assim sendo, é possível concluir que o direito assume posições diversas a depender do sistema a ser analisado. Mesmo ao tratarmos da ordem global, porém, é certo que o direito tem um caminho interessante a ser pavimentado, com um amplo espaço para o seu desenvolvimento. O desafio que se coloca é a combinação da força vinculante das normas internacionais com a soberania e a relação de poder dos Estados - desafio esse há muito percebido, mas cuja solução ainda não foi identificada.
Referências:
Disponível em: <https://forbes.com.br/forbesagro/2022/03/ucrania-esta-entre-os-maiores-produtores-de-trigo-do-mundo-e-afeta-todo-o-mercado/>. Acesso em 26 de maio de 2022.
Disponível em: <https://www.gov.br/mre/pt-br/assuntos/politica-externa-comercial-e-economica/comercio-internacional/o-sistema-de-solucao-de-controversias-da-omc>. Acesso em 27 de maio de 2022.
MORGENTHAU, Hans. Politics among nations, 1948.